segunda-feira, 19 de julho de 2010

Na praia


Por Francisco Queirós, vereador da Câmara de Coimbra e membro do PCP.


Praia. Fim-de-semana. Desprendido do trabalho, tanto quanto possível. Esparramado ao sol, depois de uma refrega de amor com o mar, quase quente e sedutor, cerrara os olhos, estava quase tudo perfeito. Quase, que o dever de escrever intrometia-se no estado de felicidade. Tem de ser – escreverei. E já garatujando ideias, sonolento, quase a dormir, decidi: hoje não vou falar de crise.
Não irei escrever sobre os mais de dois milhões de pobres e os três milhões de portugueses que estão à beira de o ser. Não falarei do aumento do desemprego e de impostos ou da dramática redução das prestações sociais. Que interessa agora que haja famílias a retirar os idosos de lares, por falta de dinheiro? Não vou falar da fome que cresce a olhos vistos, nem dos novos 600 milionários. Que importa que não haja dinheiro para a farmácia? Que interesse tem agora que as três maiores fortunas de Portugal disponham de 4,5 mil milhões de euros, enquanto milhares de desempregados não têm subsídios e muitos desesperam? Afinal, somos campeões em doenças mentais, como oficialmente foi revelado. Não há casas. Não há empregos. Não há Metro e nem carris na linha da Lousã. Não há Hospital Pediátrico, apesar do governo ter prometido a sua inauguração para o último trimestre de 2009. Vão encerrar mais escolas do 1.º ciclo. Mas estamos de férias! Faltam médicos nos centros de saúde e nos hospitais, não há enfermeiros, mas há muitos enfermeiros desempregados. O Serviço Nacional de Saúde está profundamente doente, mas a Escola Pública também, graças aos últimos governos. Mas estamos de férias, que diabo! O sol brilha e tudo isto é uma chatice. É uma chatice bem grande, que a Maria tenha acabado a universidade e esteja desempregada. É uma chatice que a Isabelinha tenha sido despejada por há meses não conseguir pagar a renda da casa onde vivia há trinta anos. É uma chatice que a reforma do António não chegue para comprar carne e peixe muito menos, “vai-se comendo como Deus quer” e o Sócrates deixa, e na farmácia escolhe-se, “este é para o coração pode ir, esse aí não faz tanta falta, desta vez não levo”, “de certeza, senhor António? olhe que precisa de o tomar”, insiste o farmacêutico, “deixe lá, desta vez fica assim”. Mas estamos de férias!
Ao sol, estirado na praia, embalado pelo som do mar e pelo calor sonolento, resistirei a toda a realidade. Para desgraças basta o resto do ano. Está decidido, escreverei sobre sol, mar e praia, falarei de crianças e de sonhos, do amor, da beleza dos teus olhos de onde partem navios à conquista do mundo. De tudo! De tudo, menos do país real.
Acordei. A pele queimava, escaldada pelo sol. A dor impedia que me concentrasse de novo no sonho que tivera. Não me recordava com o que sonhara, quando ao lado – não se consegue ter sossego na praia – ouvi: “Luísa, hoje, vamos almoçar fora”. “Temos lá dinheiro para isso, homem!”
Retirado do Diário das Beiras
Conclusão: É favor ouvir o Discurso de José Sócrates no último debate do estado da nação no Parlamento.

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